sábado, 21 de janeiro de 2012

Armadilhas da obesidade - Parte 1

Revista Mente & Cérebro - edição 169 - Fevereiro 2007

Armadilhas da obesidade
Mecanismos cerebrais que regulam o prazer da alimentação, a fome e a sensação da saciedade são muito semelhantes aos que influem na dependência de drogas como álcool e cocaína.
por Oliver Grimm
Muita gente acredita que informação e força de vontade são suficientes para se livrar dos quilos a mais. Falar é fácil. Difícil é vencer as tentações, todos dias e em toda parte. Embora estejamos cansados de saber dos malefícios do excesso de gordura e de açúcar e dos riscos da obesidade, para um número cada vez maior de pessoas é impossível resistir e controlar os apelos do estômago. Às vexes, a vontade de comer é mais forte que a melhor das intenções, as recomendações médicas e os ideais de beleza. Em nome de pequenos prazeres efêmeros, colocamos os bons propósitos, a auto-estima e até a saúde.

Porém, não basta atribuir à vontade do indivíduo todo o ônus de manter uma alimentação saudável. Hábitos alimentares são resultado de forças orgânicas e psíquicas que estão, em grande parte, fora do alcance de nossas decisões conscientes.

Qualquer pessoa que já fez dieta sabe disso. Hoje a obesidade é um dos grandes problemas de saúde pública mundial; o acúmulo de gordura corporal é o principal fator de risco para doenças cardiovasculares e diabetes. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), só na Europa morrem todos os anos cerca de 250 mil pessoas em decorrência dos maus hábitos alimentares. No Brasil, 27 milhões de pessoas estão acima do peso e quase sete milhões são obesos.

A identificação da leptina, um peptídeo secretado pelas células adiposas e que desempenha um papel-chave na regulação do apetite e do metabolismo energético, foi um dos grandes marcos na pesquisa da obesidade. Descoberta em 1994 pelo biólogo Jeffrey M. Fridman, da Universidade Rockefeller, a leptina interage com receptores situados no núcleo ventral medial - região do hipotálamo conhecida como centro da saciedade -, sinalizando quando já se comeu o suficiente. Em condições ideais, o aumento dos depósitos de gordura produz sinais que inibem a ingestão de alimentos. Nos obesos, porém, há uma disfunção nessa retroalimentação mediada pela leptina.

Fatores hereditários explicam boa parte dos casos de obesidade e de dependência química; mutações já identificadas envolvem vários genes


O que acontece na obesidade é o mesmo mecanismo do diabetes tipo II, em que níveis elevados de glicose estimulam a secreção excessiva de insulina, de forma que os receptores dessa ficam dessensibilizados - por essa razão esse tipo de diabetes é chamado resistente à insulina. De forma similar, o excesso de gordura faz com que níveis de leptina se tornem muito altos, e os receptores no hipotalâmicos deixam de responder. O resultado é a sensação de insatisfação e a vontade de comer mais.

Apontar a leptina como único fator responsável pelos quilos a mais, entretanto, é um equívoco: inúmeros determinantes físicos e psíquicos contribuem para esse quadro considerado, na maior parte das vezes, não um transtorno em si, mas um sintoma.

Há muito tempo os cientistas já perceberam aspectos comuns entre o comportamento alimentar compulsivo e a dependência química. Um deles é o craving, descrito como um desejo intenso de ingerir algo muito específico, que pode ser chocolate, pizza, cerveja ou cocaína. Outro exemplo é o evidente aumento da ingestão de alimentos, quase sempre acompanhado de ganho de peso, experimentado por qualquer pessoa que pára de fumar.

Escondida nas profundezas do cérebro reside uma estrutura que nos ajuda a compreender o papel da compulsão alimentar na obesidade. Também conhecido como centro do prazer, o núcleo accumbens é um conjunto de neurônios comprovadamente envolvidos nos mecanismos de dependência. Importante na regulação da emoção e da motivação, ele é um local de convergência de fibras procedentes da amígdala, do hipocampo e dos lobos temporais, e emite projeções para regiões como córtex cingulado, lobos frontais e hipotálamo. Todas as substâncias que levam à dependência promovem a liberação de grandes quantidades do neurotransmissor dopamina nessa região, o que na prática se traduz como uma sensação de enorme prazer. A cocaína e a anfetamina, por exemplo, aumentam em até 15 vezes concentração de dopamina no núcleo accumbens e algo semelhante acontece com a morfina e a heroína. Mas o que isso tem a ver com a obesidade?

Uma das projeções do núcleo accumbens exerce comando direto sobre o hipotálamo, que regula, entre tantas coisas, o comportamento alimentar. Animais de laboratório modificados geneticamente para não produzir dopamina dão mostras inequívocas dessa estreita relação: perdem a motivação, deixam de comer e acabam morrendo de inanição. À medida que seu cérebro recebe doses periódicas do neurotransmissor, voltam a se alimentar normalmente. Em 2001, a psiquiatra Nora Volkow, hoje diretora do Instituto Nacional contra o Abuso de Drogas, em Bethesda, observou, por meio de tomografia de emissão de pósitrons (PETscan), uma correlação negativa entre índice de massa corporal (IMC) e concentração de receptores de dopamina no núcleo accumbens. Em outras palavras, quanto mais gordo o indivíduo menor a disponibilidade dos receptores dopaminérgicos. Os resultados sugerem que a compulsão alimentar seria uma forma de compensar a ausência de efeito do neurotransmissor. Teoricamente, a ingestão de comida deveria liberar mais dopamina, mas como aqueles receptores, por algum motivo desconhecido, estão escassos, a solução é comer mais ainda, dando origem a um círculo vicioso que também é a principal característica do abuso de drogas.

Além do núcleo accumbens, a amígdala é outra estrutura essencial para a compreensão da compulsão alimentar. Já na década de 30, o neurocientista alemão Heinrich Klüver e seu colega americano Paul Bucy lesionaram a amígdala de macacos e assim os transformaram em verdadeiras máquinas devoradoras: levavam à boca tudo o que fosse comestível, e muitas vezes também o que não era.

Responsável pelas reações de medo, a amígdala é uma estrutura muito antiga do ponto de vista evolutivo e de importância central para o sistema límbico. Seu papel sobre o comportamento alimentar em humanos foi demonstrado em 2001 por Kevin LaBar, do Centro de Neurociência Cognitiva da Universidade Duke. O pesquisador apresentou objetos comestíveis e não-comestíveis a nove indivíduos cuja atividade cerebral foi monitorada por meio de tomografia helicoidal.

Soando o alarme
Os participantes eram saudáveis, embora famintos por um jejum de oito horas que precedeu o experimento. Mas o desconforto durou pouco. Depois da primeira bateria de testes, eles puderam se deliciar com uma farta refeição, antes de serem novamente submetidos ao tomógrafo. Assim LaBar comparou a atividade cerebral das mesmas pessoas em duas situações: com fome e, depois, devidamente saciadas. Os resultados da primeira etapa do teste mostraram que nos cérebros dos esfomeados a amígdala entrara em franca atividade sempre que algo comestível surgia em seu campo de visão. Esse efeito não se manteve na segunda etapa, após a refeição, o que mostra que a amígdala funciona como um alarme no organismo.

Quase simultaneamente aos experimentos de LaBar sobre os mecanismos da fome e da saciedade, o neurocientista Clinton Kilts conduzia, na Universidade Emory, em Atlanta, realizaram estudos semelhantes com dependentes de cocaína. Os cientistas lhes mostravam fotos perturbadoras, como as típicas fileiras de pó branco, por exemplo. Observada pelo PETscan, a amígdala reagia de forma exacerbada tão logo os indivíduos puseram os olhos sobre a imagem.

Outra estrutura nitidamente envolvida na dependência química é a porção superior da órbita ocular do córtex frontal, mais conhecido como córtex orbitofrontal (COF), o qual tem grande participação na regulação do humor e no comportamento baseado em recompensa. Pacientes que sofreram lesão no COF em decorrência de traumatismo ou doença degenerativa geralmente apresentam dificuldades para controlar seus impulsos, falam tudo o que lhes vem à cabeça e manifestam suas compulsões tanto no jogo como na alimentação.

A bióloga Dana Small, da Universidade Noroeste, em Chicago, foi uma das primeiras a detalhar a participação do COF nas sensações de prazer decorrentes da ingestão de alimentos. Enquanto nove pessoas se deleitavam à vontade com seus chocolates preferidos, a pesquisadora observada a atividade de seus cérebros pelo PETscan. Juntamente com várias outras partes do córtex, sobretudo as responsáveis pela assimilação sensorial, a porção medial do COF vibrava intensamente. Pouco tempo depois, Small repetiu o experimento, mas com uma modificação crucial. Dessa vez, os voluntários deveriam consumir quantidades cada vez maiores de chocolate, de forma que o prazer de outrora se transformasse em sofrimento. Os resultados mostraram que o COF médio, antes em franca atividade, foi inibido. Enquanto isso, uma região vizinha, o COF lateral, entrou em ação.

O que todos esses estudos revelam é que vários mecanismos cerebrais subjacentes ao comportamento alimentar são muito semelhantes, se não os mesmos, aos implicados na dependência, seja de drogas como álcool ou cocaína, seja de jogo. Obviamente, nem toda obesidade pode ser explicada pelo comportamento alimentar compulsivo; em muitos indivíduos, o componente genético é muito forte. Na maioria dos casos, porém, o controle da ingestão de alimentos promove excelentes resultados.

CONTINUA...
Fonte: http://www2.uol.com.br/vivermente/reportagens/armadilhas_da_obesidade.html

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